Hell's 500, Capítulo III, O Regresso (não é do Senhor do Anéis

27/12/2017

Ainda os nossos cérebros se debatiam com a árdua tarefa de arrumar devidamente as memórias gigantescas no interior dos pequenos cortexes, na área destinada aos momentos que se recordam quando te estiver quase a dar o badagaio, já os dois intrépidos ciclistas se tinham montado nas suas bicicletas, com sorrisos nos lábios que davam duas voltas à cabeça, mesmo com capacete. Afinal já faltava pouco...seriam apenas 230 kms até casa.
- Quanto?- 229 kms agora.- Tanto?...- E agora?- 228,8 kms.........- Porra!
- Porra!
E, mais ou menos, à 3451ª vez que se ouviu a palavra "Porra", já só faltavam uns 180 kms e decidimos parar para comer qualquer coisa. E os grandes ciclistas, que normalmente gostam de se lambuzar com umas cervejas pretas que deixam a espuma a escorrer dos bigodes, pediram sabem o quê? Não? Não adivinham?
- Queríamos dois compais de laranja e duas sandes mistas, se faz favor!
A consciência do que tinham ainda pela frente e a noção de que facilmente poderiam ter de recorrer aos préstimos do seu grande amigo Carlos Duarte, um intrépido ciclista da família dos Zés das Bikes (ver facebook), que entre duas fornadas de frangos seria bem capaz de vir em nosso auxílio rapidamente (caso não viesse na Ford Transit das voltas épicas), levavam a que a todas as cautelas fossem poucas, no sentido de não desafiar os estômagos, que por vezes têm feitios próximos dos da Querida Esposa.
Com tantos cuidados e em resultado de uma época bem planeada, onde o rigoroso plano de treino e controlo rígido de um regime alimentar bem equilibrado (ok, o percurso era plano e o vento a favor), a velocidade média aumentou exponencialmente. Tanto, que chegámos a passar por dois ciclistas: duas velhotas, uma com chapéu de palha e um cesto com nabiças, e outra com um lenço preto, óculos de sol um bocado aero, e uma cesta de beringelas (ok, não parece grande coisa, mas eu só comecei a dedicar-me mais ao ciclismo em 2014 e elas devem ter pedalado toda a vida...a experiência não conta para nada?)
Penso que entre os 300 e os 400 kms a viagem passou num instante. A temperatura estava no máximo (uns 17º) e o percurso parecia uma camisa acabada de passar a ferro, sem rugas ou vincos que nos fizessem mossa. Sentia uma ligeira dor no joelho direito, mas conseguia-me ir distraindo dela, se pensasse apenas na ligeira dor no glúteo esquerdo.
Andava eu ocupado com estas transições, agora joelho, agora rabo, pelos lados de Óbidos, quando entra pelos meus ouvidos um "boa- tarde" meio ofegante. Foi o tempo de rodar a cabeça e ver passar por nós dois ciclistas todos equipados com logotipos com licras e bicicletas todas full-aero-carbono-speciallized-di2ou3-coiso (como diria o Velopata).
Olhei para o João e ele olhou para mim.
Ambos sabíamos o que nos apetecia fazer naquele momento, e estávamos à espera que o outro desse a ordem para ir ter com aqueles senhores e retribuir-lhes o cumprimento que não nos deram tempo de dar. Talvez nesta altura o cérebro ainda estivesse a funcionar melhor do que as pernas, porque decidimos ir atrás deles apenas em pensamento. E ainda bem, porque certamente esta foi mais uma parte do ardiloso esquema forjado pela Querida Esposa para fazer fracassar a volta, levando-nos a um monumental empeno que nos limpasse de vez a ideia de sequer tentar mais outra aventura deste tipo, e nos obrigasse à humilhação de ter de regressar de carro.
Mas os dois ciclistas do Pro-Tour, mesmo contratados a peso de ouro, rapidamente se cansaram e reduziram o ritmo, terminando exaustos e completamente derreados uns quilómetros depois, fingindo estar apenas a fazer uma pausa numa fonte, para abastecer os bidons, tendo chamando o carro vassoura, logo após termos desaparecido da sua vista (se não acreditam, vejam o flyby, no strava).
Olhei para cima, à procura do ego, e apercebi-me que aquele disco amarelo que há pouco estava lá em cima, e que seguramente era o responsável por ter podido guardar os pernitos, as capas dos sapatos, o casaco, o gorro e a gola na bolsa do selim, há umas horas atrás, tinha desaparecido.
Uma paragem para vestir o casaco, que parecia suficiente para fazer os últimos 80 kms que faltavam e toca a andar.
- 80 kms?
- 3 horas?
- Pára aí outra vez, João! Doí-me o joelho e o rabo, e estou cheio de frio. Deixa-me vestir tudo o que tenho.
E num ápice, aquela singela paragem de autocarro perdida entre duas povoações tão insignificantes que nem me recordo do nome, transformou-se num balneário-oficina-restaurante-enfermaria, acomodando 2 seres que se preparavam para a derradeira, mas nem por isso mais simples jornada. Quais jovens heróis de shaolin que se preparam para o derradeiro combate, colocaram as golas no pescoço (não tínhamos trazido as fitas do karaté, até porque protegem pouco do frio), e vestiram tudo o que tinham na mala (e mesmo assim, ficaram com frio). Apesar de não sentirem quaisquer dores nem qualquer diminuição das suas capacidades físicas, após umas 17 horas a pedalar, resolveram dividir uma pastilha de caféina, carinhosamente apelidada de "levanta-mortos", apenas e só para aliviar o peso da carga que transportavam.
Sim, porque faltavam as serras até Lisboa.
Ok, serras não. Uns montinhos...
Mas quem conhece o caminho sabe que a subida para a Serra da Vila (parte final com 20% de inclinação) e para a Malveira (comprida comó catano) não são para brincadeiras, principalmente se estiverem a pedalar há umas horitas e com o desviador da frente avariado (sim, o meu desviador não me deixava baixar para o prato pequeno, caso contrário não subia para o grande, tendo de colocar lá a corrente à mão).
Mas aquele levanta-mortos deve ter uma quantas doses daquele remédio para a asma, porque desatámos a subir as serras como se não houvesse amanhã (ou pelo menos para não ter de pedalar ainda amanhã e chegar hoje a casa).
Ou isso, ou o facto de ter ligado o live-track, pois os amigos deviam estar a seguir o nosso desempenho, e não querermos preocupá-los se nos vissem a avançar demasiado lentos.
Ou então foram as saudades da Querida Esposa e da Querida Noiva. Saudades ou receio em tornar a coisa ainda mais complicada, se chegasse a casa depois da hora combinada. Aí é que estaria tudo estragado...
Batemos todos os PR's nessa parte do percurso (eu pelo menos bati, porque nunca lá tinha passado) e chegámos a Loures, já a cheirar as sardinhas e os manjericos (Eu sei que o Santo António é em Junho, ou Julho, mas pronto.)
Para terminar ainda havia que subir uma subida complicada e o João achou que podia facilitar um pouco as coisas. Estão a imaginar o João a facilitar as coisas, né? Eu também o conheço e isso deixou-me preocupado. A última vez que quis facilitar as coisas, depois de uma volta de 380 kms chamada 3 serras (Sintra, Montejunto e Serra de Aire e Candeeiros), decidiu só ir subir a Arrábida pelo convento, fazendo as 4 serras e 400 e tal quilómetros.
Mas o João conhece a Querida Esposa e o seu poder de influenciar a tenra Querida Noiva, nova nestas andanças, pelo que nos propôs apenas entrar por Lisboa pela Calçada de Carriche, que é um trajecto muito agradável de se fazer, já que podes escolher por qual das seis ou sete faixas de rodagem preferes circular. Nós optámos pelo passeio, que apesar de ser todo em calçada irregular, com fendas que surgiram com o terramoto de 1755, acabava por ser mais seguro do que qualquer outra opção disponível.
E assim se fizeram os metros finais até ao bairro sossegado onde tudo havia começado, há 26 horas atrás.
Subimos para um brinde (eu, porque o João deve ter aproveitado para um banho e algo mais), e o João abriu uma garrafa de ginja que esteve ao nível da comemoração. O Henrique Lopes teria certamente aberto a garrafa com um qualquer apetrecho especial, ter pré-aquecido os cálices próprios à temperatura ideal e cheirado primeiro duas vezes antes de beber, mas eu acho que bebi logo de penalti, depois daquela mariquice de torcer os braços com o João, que ficou na foto tirada pela Querida Noiva.
Como lá em casa haviam assuntos mais importantes a tratar (qualquer coisa selvagem havia sido prometida pelo João à Querida Noiva, mas eu não o vi para em lado nenhum durante a viagem para trazer recuerdos) decidi pôr-me a andar dali para fora.
E seguiu-se uma das meias horas mais duras da minha vida, a lutar com o sono e com o cansaço. Ainda procurei uns palitos para manter os olhos abertos (já vi o Mr Bean fazer isto num filme e resultou), mas à falta deles, usei a táctica de conduzir apenas com um olho aberto e ir alternando com o outro, deixando cada olho dormir um bocadinho. Coitados, estavam cansados de pedalar.
E cheguei ao Barreiro. A princípio estranhei não ver nenhuma multidão com faixas, música pelas ruas e fogo-de-artifício, mas não desanimei. Quando cheguei à minha rua e não vi os vizinhos e amigos com travessas de leitão e garrafas de champagne fiquei mais desconfiado. Teria havido alguma epidemia? O que teria acontecido de tão grave, que justificasse esta ausência? Será que estavam todos bem?
Percebi realmente o que se passava e vieram-me as lágrimas aos olhos! Claro! Uma festa surpresa! A casa cheia de balões, luzes e doces, as luzes todas apagadas e quando eu puser a chave à porta e acender a Luz.....SURPRESA!!!! Toda a família o os amigos à minha espera para me abraçar e dizer que tiveram muito receio, muitas saudades e que ainda bem que voltei, que lhes faço muita falta!
Coloquei à chave à porta e cheio de alegria e entusiasmo, disse: CHEGUEI! ........cheguei!....Fui à sala dar um beijinho à Querida Filha, que estava a ver um filme e me perguntou se já tinha chegado, fui ao quarto do Querido Filho primogénito, que estava a jogar computador e me mostrou uma mão fechada com um polegar no ar, fui ao quarto do Querido Filho mais novo, que estava ao telefone com a namorada e me deu um gime-five, passei pela Querida Gata, que estava a dormir e nem me disse nada, e finalmente fui ao quarto onde estava a Querida Esposa.
Abri a porta e disse:
- Olá, amor!
E ela respondeu ternamente, com uma voz tão doce vinda bem lá do fundo do coração:- Olá! Ainda não arrumei a tua roupa para a viagem, mas as nossas já estão. Tens de ir buscar as malas à casa dos teus pais. Achas que leve estas botas ou estas? Tens fome? Tens umas massas na panela, que sobraram do jantar. Podes aquecer?

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