Hell's 500 - Capítulo II, A Noite

27/12/2017


Às 18:30 do dia 22 de Dezembro, no interior de um carro estacionado num qualquer bairro de Benfica, um homem aparentemente normal acaba de devorar um tupperware de penne à lo pommodoro (ok....massas com tomate) no carro, depois de uns dias em que a dieta foi invariavelmente essa: massas. Com isto ou com aquilo. Simples ou à la qualquer coisa. Ao almoço ou ao jantar.
Uma mota chega e estaciona no mesmo local. Outro homem aparentemente normal desaparece para o interior de um prédio, envergando um capacete preto, uma fatiota de trabalho e uns sapatos de camurça silenciosos, para passados 5 minutos voltar a aparecer com outro capacete preto, um equipamento de ciclista e uns sapatos-de-ciclismo-que-fazem-muito-barulho-a-andar.
- Vais de calções, João? Vai estar frescote.
- Vou! Eu nas pernas não costumo ter frio!
Nesta altura pensei em deixar os pernitos no carro, mas felizmente o cérebro ainda estava no seu estado normal.
Um pouco antes das 19 horas, um abraço de boa sorte, um pé no cleat do pedal direito e a primeira de muitas pedaladas que se iriam seguir estava dada.
Os primeiros quilómetros foram a ziguezaguear pelo trânsito de Lisboa. Hora de ponta e as pessoas aparentemente normais regressavam dos seus trabalhos com pressa para o jantar. Até Loures foi sempre aos esses, cheios de pressa para chegar ao desconhecido, por entre milhares de carros cheios de pressa para regressar ao que conhecem todos os dias, invariavelmente.
Às 22:00 primeira paragem no Bombarral, à procura de uma sopa quente, depois de 80kms de sobe e desce constante, com um vento gelado (mau) e frontal (ainda pior), com a subida do Arranhó, que pouco nos arranhou pois havia que gerir o esforço com muita cabeça.
- Boa noite, tem sopa?
- Não. A esta hora a cozinha já fechou.
- Sabe onde podemos comer uma sopa quente, por aqui?
- Talvez só nas Caldas da Rainha, mas de bicicleta nunca mais lá chegam.
Os dois pratos de sopa com que vínhamos a sonhar lá foram despromovidos a dois galões a escaldar, acompanhados com 2 pampilhos, pois ainda faltavam cerca de 20 kms para as Caldas da Raínha e nada nos garantia que alguma cozinheira iria estar à nossa espera com a panela da sopa a fumegar.
Até Leiria foi sempre a doer, com um vento que parecia ter sido contratado pela Querida Esposa para nos quebrar e fazer voltar para o aconchego do lar. O João teimava em me proteger do vento, pedalando na frente, e foi graças a ele que este primeiro terço do caminho se fez sem problemas.
De Leiria a Pombal, fugimos à EN1 por uma estrada paralela, que passava por aldeias e bosques que pareciam assobrados. Escuridão total e um nevoeiro cerrado, mas zero carros. Nenhum sítio para parar e beber algo quente.
Entrámos finalmente na EN1. Depois da calmaria dos sítios por onde passámos, parecia que tinham aberto todas as estações de camionagem e que todos os camiões estavam ali, felizes por terem a estrada livre de ligeiros para circularem a toda a velocidade. Numa estrada sem bermas e numa noite de nevoeiro cerrado, podem imaginar o nosso entusiasmo em seguir caminho.
Foram 10 kms espetaculares, que não me vou esquecer tão cedo. Principalmente das partes em que a berma com 50 cms de largura tinha buracos com 1 metro de diâmetro, e ouvíamos os camiões atrás de nós a toda a velocidade.
- Encosta, João! Está ali um café aberto!
Rapidamente encostámos as bicicletas às montras de uma providencial estação de serviço, que inacreditavelmente estava aberta às 4:00 da manhã, cheia de camionistas a beber minis e bifanas. Ali estavam reunidos os responsáveis pelo perigo, que punha as nossas vidas em risco! Ali era o ninho deles! E tínhamos a oportunidade de fazer justiça, em nome de todos os ciclistas! Arregaçámos as mangas dos jerseys e mentalmente fizemos as contas de quantos seriam para cada um. Eu iria para junto do balcão e o João para as mesas. Iria ser duro...
- Ora, um café para mim e um para ti são dois. Senta-te que eu vou pedir!
Abrimos a porta e levámos logo com uma chapada certeira da ordem de uns 20 graus celsius. Os tipos do balcão andavam de T-shirt e há pouco os nossos GPS marcavam -2º! Depois, o golpe fatal: Um upper-cut de cheiro de sopa de feijão!
Caros amigos, vocês não imaginam a delícia que estava aquela sopa! Um caldo de textura suave e homogéneo, de um lindo tom castanho- avermelhado, salpicado por tenras folhas de couve e repolho, onde pontuavam suculentos feiões vermelhos cozidos no ponto ideal! E que dizer da maravilhosa fatia de carne que preenchia o centro do crocante pãozinho de trigo? Digna do mais afamado dos estabelecimentos afamados de Vendas Novas!Cada colherada de sopa limpava da memória as piores partes do percurso. Assim, no final do prato apenas nos lembrávamos das rectas sem vento e das descidas (e apenas das partes em que não sentíamos muito frio). Um cafezinho no final e tudo parecia perfeito! Prontos para mais uma belíssima jornada até Coimbra.
Abrimos a porta e pensámos que tínhamos entrado no armazém frigorífico do café. Ainda procuramos bem se não nos tínhamos enganado na porta, mas não havia dúvidas: Era mesmo por ali.
Os minutos seguintes não foram fáceis, até aquecer. Sabíamos que havia pela frente mais uns 5 quilómetros de estrada perigosa, até Condeixa, mas que depois melhorava. E melhorou. A berma aumentou e pudemos circular lado a lado até Coimbra.
Aproveito para agradecer ao André Alves a amabilidade em fazer o favor de nos inverter o track com tanto profissionalismo (tivemos de inverter o sentido do percurso para não chegar ao magic bench ainda de madrugada). Se nas rotundas facilmente percebíamos que não deveríamos entrar pela esquerda, como o GPS recomendava, dentro das cidades ele teimava em aliciar-nos a infringir o código da estrada, ignorando todos os sentidos proibidos. A passagem pelo viaduto pedonal sobre uma espécie de autoestrada, em Coimbra, foi um dos mais maravilhosos desvios ao percurso que tivemos de fazer, só ligeiramente inferior à escalada com as bicicletas à mão, que já tínhamos realizado há umas horas atrás, não me lembro onde, para subir para a ponte que tínhamos atravessado por baixo.
Em Coimbra mudámos de rumo e a de topografia. Pedalávamos numa zona baixa e plana, na direcção do mar, quase sem trânsito, e começávamos já a sentir o nascer do dia. A humidade e o frio eram então tão intensos, que quase a chegar a Mira, ainda pensei em voltar para trás à procura dos pés e das mãos, que não conseguia sentir.
- Vamos já ao raio do banco, ou comemos qualquer coisa antes?
- Paramos antes, para chegarmos lá em condições.
O dono da pastelaria estranhou quando viu dois ciclistas a tentar entrar pela sua porta. Normalmente, aos sábados de manhã, os ciclistas entram cheios de energia, preparados para as suas voltas de grupo. Mas estes dois mal conseguiam empurrar a porta...
Mais admirado ficou, quando os viu tirar os sapatos e as meias, e aquecerem os pés com os 2 galões a escaldar que cada um pediu! Mal sabia ele, que previamente os tinham aquecido com a água fria do lavatório...
Lentamente, como quem desbrava trilhos há muito abandonados, o líquido vermelho e espesso que circula no interior do nosso corpo foi chegando às extremidades congeladas. Mas deve ter aberto os trilhos com um martelo-pneumático, pois deu umas dores do cacete! Quando já sentíamos 4 dedos em cada pé, começámo-nos a equipar, dando tempo ao último dedo de descongelar completamente.
- Então bora lá ao raio do banco! Tiramos a foto e regressamos a casa.
E foram nem 5 minutos até chegar à lagoa. Sem termos a certeza do local exacto, pedalámos ao calhas junto à margem, sem noção do magnetismo tão forte que o banco possui. E à nossa frente, brilhando ao sol da manhã, como que flutuando sobre uma névoa de algodão, estava o banco mágico!
Parámos os dois, à entrada da ponte de madeira que leva ao banco e ninguém quis dar o primeiro passo. Acho que permanecemos imóveis por uns instantes longos contemplando o cenário que se nos oferecia: Os juncos junto à margem, a cor da madeira iluminada pelo sol, a ligeira brisa que fazia deslizar a névoa sobre as águas, que subia em pequenos tornados ao ser aquecida pelos raios de sol. E à nossa frente, o banco. Vazio. De frente para o Sol, que acabava de se elevar por trás dos choupos e que víamos pela primeira vez desde o início da nossa viagem.
Pendurámos as bicicletas na estrutura de madeira sobre o banco, como tínhamos planeado fazer durante uma das curtas conversas que tivemos durante a viagem. A foto é obrigatória, para registar o momento no grande álbum que o Noca Ramos criou, e que vai crescendo de dia para dia, mas para nós foi um instante. Automático.
Sentámo-nos no banco, virados para o sol e permanecemos calados durante quase todo o tempo. Ninguém passou, nenhum ruído, nenhuma interferência. Só nós e o universo! Durante uns minutos que pareceram uma eternidade.Já anteriormente lá tinha estado, numa viagem que fiz desde o Porto até lá, sozinho, mas percebo agora que nessa altura, não mereci que o banco revelasse a sua magia. Foi fácil demais e tinha o regresso assegurado pela Querida Esposa, de carro.
Desta vez, não foi assim: o banco sentiu todo o sentido da viagem e quis mostrar-se em todo o seu esplendor!

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